Em 1972, quando era líder do Grupo Autêntico do MDB velho de guerra, conheci Quebrangulo, indo a um comício em Palmeira dos Índios para apoiar um grande companheiro, o então deputado federal José Costa.
Recordo este episódio quando lembro que a literatura deste país pranteia, neste dia 20 de março, a morte do escritor alagoano Graciliano Ramos, que nos deixou, nos idos de 1953, uma obra de tal brasilidade que poucos escritores conseguiram desenvolver.
Ali, em Quebrangulo, sua terra natal, vi, com os meus próprios olhos, a dura realidade de fome, miséria e devastação terrestre e humana que Graciliano retratou com inexcedível maestria no seu romance Vidas Secas.
Graciliano narra a agonia e morte da cadela Baleia. Vagando com a família pelo sertão, o personagem Fabiano, tangido pela seca, decide matá-la, para lhe aliviar o sofrimento.
Algumas das qualidades que fazem desse escritor alagoano um mestre da língua portuguesa podem ser percebidas neste trecho: “A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia. (…) E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. (…) Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora, cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. (…) A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. (…) Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás (…) gordos, enormes”.
Vidas Secas é um desses romances que, revelando inóspito cenário e profunda injustiça social, acabou transformando-se em panfleto de lutas políticas.
Embora dissesse repudiar o profano “engajamento” político na arte, era-lhe impossível deixar de denunciar a violência, o autoritarismo, a prepotência e as injustiças. Sua linguagem era fluente, rigorosa, seca, cortante, econômica, sem adereços ou penduricalhos. Seus romances tinham sempre a secura exata, frases que diziam muito com grande economia de meios.
Em Memórias do Cárcere, ele descreve: “Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer”.
Nesse livro, ele se agiganta. Preso entre março de 1936 e janeiro de 1937, falsamente acusado de ligações com o levante comunista de 1935, ele não se auto imola como um herói da resistência à repressão do Estado-Novo.
Foi descoberto escritor por um relatório onde se podia ler coisas assim: “A prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras”. (…) “Não pretendo levar ao público a ideia de que os meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas. Mas afinal existem”.
Esse relatório caiu nas mãos de Augusto Frederico Schmidt, famoso editor do Rio de Janeiro. Impressionado com o estilo quase inédito, Schmidt intimou-o: “Envie o romance”. Três anos depois, Graciliano enviou-lhe Caetés, seu primeiro grande sucesso.