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Identidade de Gênero: Em busca do respeito

Foto: Divulgação/Notisul
Foto: Divulgação/Notisul

Willian Reis
Laguna

Quando tinha 15 anos de idade, Jair Cruz Neto saiu da casa da família, em Laguna, e entrou para o seminário Nossa Senhora de Fátima, em Tubarão. Em algum momento de sua vida, o então adolescente havia sentido uma vocação para o sacerdócio, ainda que dentro de si persistisse um pouco da dúvida sobre se aquele seria mesmo o seu mundo. Jair ficou no seminário por dois anos, até que desistiu e voltou para Laguna.

Aos 18 anos, uma nova reviravolta em sua vida. Novamente, o jovem se vê de mudança para Tubarão, mas agora com outros planos em mente. Longe de casa, desta vez saiu à procura de transexuais, porque necessitava se tornar também uma delas e assim assumir sua identidade. “Nasci com alma feminina”, conta. Acolhida no novo grupo, recebeu o nome de Sheilla Bombom.
A transformação de Jair em Sheilla seguiu com o uso de hormônios, geralmente indicado por outras transexuais a partir de experiência própria. Após quatro meses de trabalho, viajou até São Paulo para implantar silicone no peito. De volta a Tubarão, oito meses depois deu início às plásticas no rosto, de modo a dotá-lo de traços mais femininos.

No documento Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos, a psicóloga e doutora em Psicologia Social pela Universidade de Brasília (UnB) Jaqueline Gomes de Jesus explica que a transexualidade é uma questão de identidade. “Não é uma doença mental, não é uma perversão sexual, nem é uma doença debilitante ou contagiosa. Não tem nada a ver com orientação sexual, como geralmente se pensa, não é uma escolha nem é um capricho”, diz.

Com relação à orientação sexual, Jaqueline explica que uma pessoa trans pode ser bissexual, heterossexual ou homossexual. Portanto, mulheres transexuais que se atraem por homens são heterossexuais. Já mulheres trans que se atraem por outras mulheres são homossexuais.
Nos primeiros dias, a mãe de Sheilla ficou assustada ao se deparar com a nova identidade da filha. “Veio até Tubarão, na época eu estava trabalhando na rua com as meninas. Ela sentou, começou a chorar e perguntou se era isso que eu realmente queria. Disse que sim. Ela me abraçou e contou que ia me amar da mesma forma, independente da minha escolha”, relembra.

Com o apoio da família, Sheilla teria ainda de enfrentar a reação dos moradores de sua cidade natal – afinal, tratava-se de um ex-seminarista que havia largado a vida religiosa para assumir sua identidade feminina. “Foi um escândalo. A minha mãe foi bem forte porque, desde o início, as pessoas comentavam: ela não ia ser padre?”, recorda. Mas, na vida de Sheilla, até agora as mudanças costumaram a ocorrer com muita rapidez. Após ter juntado algum dinheiro em Tubarão, ela decidiu fazer as malas, embarcou no avião e mudou-se para uma temporada de dois anos na Europa. Era 2013 quando a transexual punha os pés em Atenas, na Grécia, resolvida a viver uma das maiores aventuras de sua vida. Lá ela tinha uma colega a lhe esperar e o desafio de se virar em um lugar totalmente diferente do seu, a começar pelo idioma.

Oito meses depois, seguiu viagem para Alemanha, Finlândia, Suécia e Espanha. Daí então a saudade da família apertou, e Sheilla voltou para o Brasil. Já morou quatro anos em Porto Alegre e agora se divide entre o Rio Grande do Sul, Tubarão e Laguna. Sheilla também planeja uma temporada na Itália a partir de abril deste ano.

Brasil é o país que mais maTa  travestis e transexuais
No dia 29 de janeiro de 2004, foi lançada no Brasil a campanha Travesti e Respeito, primeira ação contra a transfobia idealizada por ativistas travestis e transgêneros. A campanha foi tão importante que, desde então, é comemorada nesta data o Dia Nacional da Visibilidade Trans.

Os ataques de que o grupo é vítima não se limitam ao preconceito disfarçado ou até mesmo mais escancarado. Apenas em 2017 foram contabilizados 179 assassinatos de travestis ou transexuais, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Isso significa que, a cada 48 horas, uma pessoa trans é assassinada no Brasil. Em 94% dos casos, os assassinatos foram contra pessoas do gênero feminino.

O Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017 destaca ainda que o número de assassinatos em 2017 é o maior registrado nos últimos 10 anos. Apenas entre 2016 e 2017 houve aumento de 15% de casos notificados. A situação mantém o Brasil no posto de país onde mais são assassinados travestis e transexuais no mundo. Em segundo lugar está o México, com 56 mortes.

No Brasil, de acordo com o mapa, o Nordeste é a região que concentra o maior número de mortes, 69. Depois estão o Sudeste, com 57; o Norte e Sul, com 19 cada; e o Centro-Oeste, com 15. Em números absolutos, Minas Gerais é o Estado que mais mata a população trans. Em 2017, 20 pessoas trans foram mortas em decorrência do preconceito contra sua identidade de gênero; em Santa Catarina, foram cinco.

A maior parte das vítimas da violência transfóbica possui características semelhantes: mais da metade tinha idade entre 16 e 29 anos, e em 80% dos casos eram pessoas negras ou pardas. Do total das pessoas mortas, 70% eram profissionais do sexo. Daí também o fato de 55% dos crimes terem ocorrido nas ruas.

Hoje, Sheilla trabalha como acompanhante, mas o medo da violência física sempre a persegue. Ela já sofreu três assaltos, um em Porto Alegre e outros dois em Tubarão. No entanto, há os outros tipos de ataques, que lhe ferem da mesma maneira. “O povo no Brasil nos trata como homens, usam o termo masculino, isso também já é uma forma de agressão. Na Europa, as trans têm direitos iguais, como todos os cidadãos. Lá sempre fui tratada como mulher, como sempre desejei, como sempre busquei”, afirma.


Processo transexualizador pode incluir também cirurgias de redesignação sexual

“Transexuais sentem que seu corpo não está adequado à forma como pensam e se sentem, e querem corrigir isso adequando seu corpo ao seu estado psíquico. Isso pode se dar de várias formas, desde tratamentos hormonais até procedimentos cirúrgicos”, afirma Jaqueline Gomes de Jesus em Orientações sobre Identidade de Gênero: Conceitos e Termos. Em entrevista à Agência Brasil em novembro de 2015, a psicóloga e coordenadora do grupo de apoio a transexuais do Hospital Universitário de Brasília (HUB), Sandra Romero Studart, diz que os transexuais se veem diferentes desde a infância, com 4 ou 5 anos de idade.

“Eu via que tinha algo errado. Eu sempre me sentia feminina, mas na sociedade tinha de colocar roupa de menino, tinha de falar como menino, jogar bola, andar como menino e com os meninos. A forma como a sociedade me obrigava a ser me prejudicava muito”, conta Sheilla ao recordar a infância e suas diferenças em relação aos demais garotos de seu círculo de amizade. Em novembro de 2013, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria n° 2.803, ampliou o processo transexualizador no sistema público de saúde, aumentando o número de atendimentos e incluindo procedimentos para redesignação sexual de mulher para homem. Neste caso, o SUS realiza cirurgias para a retirada de mamas, útero e ovários.

A redesignação de homem para mulher inclui a amputação do pênis e a construção da neovagina (nome dado ao novo órgão), implante de próteses de silicone nas mamas e redução do pomo de adão com objetivo de feminilização da voz. Em ambos os casos são feitos o acompanhamento clínico e a terapia hormonal por dois anos antes da cirurgia e até um ano no pós-operatório. A idade mínima para o início da terapia com hormônios é 18 anos e para a realização dos procedimentos cirúrgicos é 21 anos. No caso de Sheilla, ela afirma que não sente necessidade de se submeter à cirurgia de redesignação sexual. “Não tenho nenhum arrependimento em minha vida. Sou muito feliz pela família que tenho, que me apoiou muito desde o início, e feliz pela mulher que sempre desejei ser, a mulher que desenhei e a mulher que sou hoje, a mulher trans”, diz.

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