Pisei no calo da democracia e ela gritou. O título desta coluna é, por si só, uma heresia constitucional — e talvez por isso mereça ser escrita. Afinal, estamos tão acostumados a tratar a democracia como dogma que esquecemos de fazer a pergunta mais incômoda: e se o problema não estiver fora dela, mas dentro?
Sim, é cláusula pétrea: todo cidadão tem direito ao voto. É o tipo de princípio constitucional que só de falar contra parece que um crime hediondo foi cometido. Mas isso não nos impede de refletir. Aliás, refletir sobre o que não pode ser mudado talvez seja o mais urgente dos exercícios políticos.
A provocação é direta: quem depende do Estado para sobreviver deve ter o mesmo peso de voto de quem sustenta esse Estado? Ou, em outras palavras mais cruas: quem vive de auxílio deveria ter direito de definir quem governa — e, por consequência, quem continuará pagando seu auxílio?
Não, não estou propondo que se rasgue a Constituição e se crie um sistema de voto censitário à la século XIX. Estou apenas apontando o elefante gordo e bem alimentado na sala: a dependência estatal massiva cria uma democracia refém de quem distribui o pão. E quem distribui o pão, quase sempre, exige votos em troca. O voto como gratidão… ou chantagem?
Pense bem: o cidadão que não consegue se manter por meios próprios, que depende de um cartão do governo para comprar comida, que vive à sombra de políticas públicas para não cair no abismo — esse cidadão vota com liberdade ou com medo?
O auxílio emergencial, o Bolsa Família, o Auxílio Brasil, o nome muda, mas a lógica é a mesma: criar uma base eleitoral cativa, sustentada por uma dependência sistêmica. O voto deixa de ser uma expressão de liberdade para se tornar um reflexo de necessidade.
Claro, em tese, programas sociais são ferramentas de justiça distributiva. Em tese. Na prática, viraram plataformas de marketing político. E nesse mercado de votos, o pobre é o cliente mais fiel — não por ideologia, mas por sobrevivência. Vota com o estômago, não com a cabeça. Essa política assistencialista, alias, não tem lado. Surge com FHC, se consolida no governo lula e podem imaginar o Bolsonaro com aquela voz tosca dele falando: “Vamos manter o auxílio Brasil de R$ 600,00.”
Há quem diga que questionar isso é elitismo. Discordo. É apenas um convite à honestidade. Quando o Estado cria uma multidão de dependentes e, ao mesmo tempo, lhes concede o poder de perpetuar esse modelo, estamos praticando democracia ou apenas oficializando o clientelismo?
Não é coincidência que o político mais popular entre os mais pobres seja sempre o que promete manter ou aumentar os auxílios. É uma equação simples: quem precisa, apoia quem dá. O problema é que esse “dar” é um verbo conjugado com o dinheiro de quem trabalha — e, ironicamente, muitas vezes vota contra os próprios interesses econômicos por medo de parecer insensível.
E se o voto tivesse responsabilidade fiscal?
Imagine um sistema em que o voto viesse com responsabilidade anexa, em que o eleitor precisasse entender o custo daquilo que exige. Em que as promessas fossem acompanhadas de notas fiscais. Utopia? Provavelmente. Mas democracia sem responsabilidade é só populismo com eleições.
E antes que os defensores da Constituição levantem seus livros (com razão), faço um adendo: sei que essa ideia é inconstitucional. Inviável. Antidemocrática até a medula. Mas a Constituição de 88, com todo respeito, também é um festival de promessas sem orçamento. Garante moradia, saúde, educação, transporte, dignidade, sorrisos e unicórnios — mas não oferece mecanismos eficazes de cobrança. E isso, sim, é um problema real. Mas deixemos esse tema para outra coluna.
Ao fim, talvez não devêssemos perguntar se quem recebe auxílio deve votar, mas como garantir que esse voto não seja sequestrado por quem distribui os auxílios. O problema não está no eleitor pobre, mas na pobreza de debate sobre o papel do Estado e a perversão do voto como moeda de troca.
A democracia universal é linda no papel. Mas, no Brasil, ela é feita num papel que rasga fácil. O desafio não é restringir direitos — é garantir que eles não sejam usados como armadilha. Porque um voto dado por medo de perder o benefício é tão ilegítimo quanto um comprado com dinheiro vivo.
No fim, seguimos vivendo num país onde quem produz paga, quem não consegue se sustentar vota, e quem governa distribui — com o único objetivo de permanecer no cargo. Democracia? Talvez. Mas com gosto de chantagem e cheiro de dependência.