Madge Branco, de 57 anos, nasceu na capital paulista, onde cresceu e cursou três faculdades: engenharia química, educação física e direito. Foi professora de balé clássico, com formação no Teatro Municipal de São Paulo, onde atuou 20 anos. É formada em piano clássico, trabalhou como produtora de eventos e coreógrafa no SBT e na TV Bandeirantes. Na área de segurança, atuou na Delegacia de Homicídios, em São Paulo, como investigadora. É delegada em Santa Catarina há 21 anos. Ela possui três filhos e dois netos.
Mirna Graciela
Laguna
Notisul – Como surgiu o trabalho na área de segurança para uma mulher que tinha a sua vida voltada à arte?
Madge Branco – Eu era professora de balé clássico, em São Paulo. Um amigo assumiu a secretaria de esportes e me convidou para ser assessora técnica. Na época, eu já tinha as faculdades de educação física e de engenharia. Na secretaria, trabalhava com processos, pois cuidava dos eventos artísticos que ocorriam no Autódromo de Interlagos, no Estádio do Pacaembu e outros locais. Eu fazia a produção da Xuxa quando ela chegava de Papai Noel. O que ocorria de eventos era de minha responsabilidade. Um chefe de gabinete sempre falava que eu deveria fazer direito e pensava: Imagina, sou bailarina, não tem nada a ver. Mas me inscrevi, nem estudei, já tinha duas faculdades e experiência de vida. Em todos os vestibulares e concursos que prestei, passei. E me perguntei onde encaixaria na minha vida essa nova área? Fui fazer direito e naquela época mudou o governo em São Paulo. A Erundina assumiu e, quando eu estava no terceiro ano de curso, ela fechou o ginásio municipal para reformá-lo. Tínhamos um tempo livre, fiz o concurso para a polícia e assumi como investigadora. Primeiro, no gabinete do secretário e, depois, na Delegacia de Homicídios. Quando terminaram as obras no municipal, tive que encaixar meu horário. Eu era investigadora, professora de balé, dirigia minha academia e um grupo de dança, e era coreógrafa no SBT. Já tinha três filhos e dormia duas horas por noite. Foi entre os meus 33 e 38 anos. Quando terminei direito, cheguei à conclusão de que não via meus filhos. Em umas férias aqui no sul, quando chegamos à Lagoa da Conceição, eles falaram: Mãe, vamos morar aqui? Respondi que sim. Prestei concurso e passei na segunda colocação. Então, começou minha trajetória em Santa Catarina. Vim para dar uma condição de vida melhor para os meus filhos. Eles passaram a adolescência em Florianópolis.
Notisul – E essa mudança de estado, foi difícil?
Madge – Cheguei em 1993 em Santa Catarina e assumi como delegada. Minha primeira comarca foi Araranguá. Mas fiquei pouco tempo, pois fui nomeada delegada da mulher em Florianópolis, onde passei 90% da minha carreira. Fui titular em oito delegacias da capital. Quando cheguei, ainda existiam muitas mulheres vítimas, submissas. Tinha vindo de uma realidade diferente. A mulher tomava a dianteira em São Paulo. Lógico, a violência doméstica existe em qualquer lugar, mas o posicionamento de uma mulher diante de uma sociedade paulistana e da de Florianópolis, na época, era muito diferente. Foi um choque, havia as que apanhavam porque a comida estava salgada. Fiquei espantada. Mas tirei de letra. Sou a primeira mulher paulista delegada em Santa Catarina. E também tem a questão no ambiente de trabalho, quando você chega para mandar. Na cabeça dos homens isso era complicado, mas eu sempre soube administrar. Você tem que se posicionar. Se estou no comando, independente do sexo, terão que cumprir, mas, graças a Deus, sempre tive um ótimo relacionamento com meus comandados. E sempre valorizei o trabalho dos bons policiais. Sou profissionalmente realizada e na vida pessoal também, consegui criar meus filhos, adoro o que faço, estou aqui por prazer, porque me aposentei e voltei.
Notisul – Como foi esse processo?
Madge – Em 2006, pedi minha aposentadoria porque já tinha 36 anos de serviço. Foi quando entrou em vigor uma lei onde poderíamos nos aposentar com 25 anos de trabalho e todas as vantagens. Um dos meus filhos morava na Europa e pensei. Quer saber, já fiz minha parcela, contribui com a sociedade e me aposentei em 2007. Viajei pela Europa, África, conheci muitas coisas, mas não deixei de estudar. Adoro trabalhar na área de crimes sexuais, violência doméstica e pedofilia. Pesquisei muito por onde passei, as situações culturais sobre o posicionamento da mulher, da pedofilia e tudo mais. Quando voltei, meu destino seria São Paulo para atuar na parte artística que ainda sinto falta, assim como também ocorreria de estar em uma delegacia. Mas, minha filha teve dois filhos e pedi a reversão da minha aposentadoria para não ficar longe deles. Como preenchia todos os requisitos para isso, retornei e assumi em Tijucas. Depois vim para Laguna para ficar mais próxima dos meus netos.
Notisul – Há quanto tempo está em Laguna e qual sua avaliação desse período?
Madge – Desde o início de abril do ano passado. Como em todos os lugares, é um trabalho de muita produtividade e união de equipe. Com isso, a gente consegue resultados satisfatórios. Não vou dizer que temos 100% porque isso não existe em nenhuma profissão. É o que falo, dependemos de sorte e empenho. Este último temos, mas, às vezes, não ocorre a sorte de atingir o resultado ideal. Mas o compromisso é fundamental e consegui unir a equipe, nosso entrosamento é muito bom. O delegado sozinho não faz nada e o policial sem o delegado também não. Isso sempre foi meu lema meu e colhi muitos frutos positivos com grandes equipes que formei. Quando cheguei aqui, por exemplo, os policiais estavam desmotivados, eram ‘fazedores de BO’, hoje são investigadores. No dia a dia, sou a primeira a chegar e a última a sair, também para dar exemplo. Sempre fui assim, continuo no ritmo alucinante de São Paulo. Esta é a minha criação. Digo que não sou chefe, sou líder. Para estar junto e na linha de frente. Até para tomar um tiro, se necessário, junto com a sua equipe. Faz parte da profissão.
Notisul – Então, a senhora vai muito para as ruas?
Madge – Existe um tabu em Santa Catarina, tipo ‘eu sou delegado de gabinete’, ‘eu sou delegado de campo’. Eu, Madge, sou delegada de polícia. Se não for para a rua, não há o que fazer no papel e vice-versa. Você tem que conhecer a comunidade, os bandidos, não posso ficar no gabinete trancada sem saber o que tem lá fora. É preciso conhecer as vítimas, os autores, saber onde estão os problemas maiores da criminalidade. Conheço cada bairro desse município, as pessoas, os problemas de cada lugar. Essa é a função do delegado, cuidar da segurança da comunidade em geral.
Notisul – O que é da sua competência em Laguna?
Madge – O que não é de minha responsabilidade cabe à DIC. A Divisão de Investigação Criminal é especializada em homicídio de autoria desconhecida, tráfico de drogas, roubo de carga e de crime organizado. Cuido dos crimes da Lei Maria da Penha, agressão doméstica, estupro, furto, roubo, bêbado na direção. Neste último, é o que mais existe, infelizmente. Não há a conscientização de que a pior arma é o carro, tira a vida de várias pessoas e ninguém se toca. A droga que mais mata no Brasil atualmente é o álcool, conforme as estatísticas. Mais de 50% das ocorrências que chegam na delegacia é em função do uso de álcool, em inúmeros casos.
Notisul – Qual o crime que mais te surpreendeu?
Madge – Foram vários, mas teve um, de uma criança que foi vítima de estupro e depois estrangulada, em Araranguá. Tocou-me muito por vários motivos. Assim que cheguei à cidade, além de atuar como delegada, montava coreografias para crianças carentes de uma instituição. Essa menininha era uma. Quando ela desapareceu, ninguém sabia o que tinha ocorrido. Fomos procurá-la e eu estava próxima do jardineiro que encontrou o corpo. Fui a primeira a chegar e ver. Marcou demais, primeiro porque eu a conhecia, é horrível a sensação de tu ver uma criança viva e depois morta na forma que encontrei. Prendi o culpado, hoje não tenho interesse em saber se está preso, pois a gente fica frustrada às vezes, investigando um caso, vira noites, a pessoa é presa, passa um tempo e é solto. Prefiro nem saber. O caso daquela senhora que foi estuprada aqui, fizemos de tudo. Ela sabe quem é a pessoa, mas falta a prova material. Como ele estava na penumbra, o reconhecimento dela tem um valor, mas não o suficiente para mantê-lo preso. Ele foi solto, mas logo em seguida cometeu uma tentativa de latrocínio em uma pizzaria e efetuou um disparo. O criminoso já estava em condicional por roubo e violência contra a mulher. Todos os seus assaltos eram muito violentos. Às vezes o flagrante não é tão difícil, mas sim a colheita de provas, a gente vai a luta para tentar segurar esses caras.
Notisul – A senhora acha que as mulheres estão mais corajosas a denunciar o agressor?
Madge – Ainda existe esse temor, infelizmente. Existem vários fatores, principalmente de classe social. Mudou, mas não muito, ainda há esse receio. São submissas por questões econômicas ou culturais. Atendo mulheres que argumentam ficar com seus maridos porque seus pais falam que casamento é para toda a vida. Na verdade, o que falta é algo chamado autoestima. Uma mulher tem que se amar acima de tudo. Há também a dependência econômica. Ela fala que o marido nunca a deixou trabalhar. Como assim? Uma mulher improdutiva na sociedade? Que exemplo vai dar para um filho? A partir do momento que decidir realmente se amar, ir à luta e que cansou de levar na cara, tudo mudará. E, fora isso, existem as que alegam estar com o homem por causa dos filhos. Que posição péssima dessa mulher! É aí que a violência se perpetua, uma criança presencia isso dentro de casa e, futuramente, poderá ser um agressor ou uma vítima. Agora, quando um filho vê a mulher admitindo que cansou de sofrer violência e vai encarar a vida, ela está dando ótimo exemplo. Os meninos pensarão: Não vou bater em uma mulher quando crescer. E as meninas que não deixarão um homem lhe agredir.
Notisul – E a questão da pedofilia? A senhora prendeu muitos estupradores e pedófilos desde que chegou.
Madge – Tem gente que pergunta se aumentou a quantidade de pedófilos, digo não. Quando prendemos surgem mais pessoas com coragem para denunciar. É sintomático. Com a criança não, é diferente. Tem a hora certa, ela manifesta uma mudança de comportamento quando é abusada, e isso pode ser detectado pelos professores ou pela mãe. São sinais que variam muito. Às vezes baixa o rendimento escolar, se torna agressiva e começa a chorar do nada. São vários tipos de reação. Mas, uma mãe atenta e uma educadora podem perceber. Menino é mais difícil, não é somente meninas que são abusadas. Já vi gravações de pedófilos que aliciavam garotas. Quando começava a nascer um ‘pelinho’, ele falava: “Não se esquece de tirar que o titio não gosta’. O duro é porque para o menino abrir o jogo que foi abusado, na sua cabeça, ele virou gay e não é isso. É uma vítima. Então, as meninas têm mais facilidade, apesar de não ser uma situação fácil. A gente não resolve nem 50% dos casos, pois o que ocorre entre quatro paredes para chegar ao nosso conhecimento é uma coisa difícil.
Notisul – A pedofilia é uma doença?
Madge – Nos seres humanos, quando aflora a sexualidade, cada um terá uma opção. Há os que são homossexuais, os que gostam dos pés, de ter relação com pessoas sujas. Mas existem os que sentem desejo por peles lisas, que são as crianças. Ninguém escolhe ser, a pessoa tem prazer naquilo. Os que têm tara em transar com pessoa morta cometem crime por violação de cadáver. Os que se relacionam com criança praticam um crime e não tem nada de doença. Se um pedófilo for preso com 30 anos, pode ter certeza que desde sua adolescência ele faz vítimas. É ignorância falar que é doença, é uma opção sexual. O pedófilo, geralmente, é a melhor pessoa na sociedade, o mais bonzinho para se aproximar de uma criança. Tem outro perfil do pedófilo, o molestado na infância. Quando aflorou sua sexualidade, veio com uma carga de problemas que o fez se tornar um molestador. Então, é um desvio por um trauma existente. Da mesma forma as meninas. As que sempre foram abusadas e nunca ouvidas, a maioria vai se prostituir porque perde o valor do seu corpo, começa a ter nojo de si.
Notisul – Uma criança ou uma mulher que sofre um estupro, o atendimento psicológico depois é primordial, ajuda?
Madge – É um trauma que nunca vai passar, tenho o treinamento para atender em um primeiro momento. Existe uma grande dificuldade de profissionais especializados nisso. Minha função é a segurança, a partir do momento que prendo o pedófilo. Gosto de trabalhar nessa área. Quando prendo, sinto o resultado de imediato. A criança já faz um ‘ufa’, perde o medo, mas o trauma não. Uma vítima de patrimônio, por exemplo, pode resgatar a parte material. Agora, agora a tua integridade emocional, no caso de estupro, você não recupera nunca. O que se fez é dar um alento para aquela vítima, com a prisão da pessoa que a machucou.
Notisul – A senhora já ficou ferida em uma ação policial?
Notisul – Fui esfaqueada por um pedófilo em uma delegacia, em Florianópolis. Ele abusava de meninos embaixo da ponte Colombo Salles. O sujeito estava com algema de cintura. Eu dava uma entrevista para o Hélio Costa, o iluminador o viu pegar uma faca em uma mochila e me avisou. Dei a volta na mesa, o peguei por trás, ele ameaçou se matar. Coloquei a mão na frente e ele me cortou, foram 12 pontos na mão.
Madge por Madge
Deus – Tenho o meu
Família – Tenho a minha
Trabalho – Paixão, se não for assim vira obrigação
Passado – De orgulho
Presente – Meus netos
Futuro – Tudo pelos meus netos
“É difícil a mulher tomar uma posição, melhorar a sua autoestima e assumir o desafio de cuidar de uma família sozinha. Isso me preocupa. Tem mulher que chega aqui e fala: ‘Ele disse que vai mudar e me amar’. Então, pergunto quantas vezes ele a ameaçou nesses 20 anos que estão juntos. E o que ouço é que são todos os dias. E pergunto quantas vezes ele a matou. O homem que faz isso é um covarde, e se a mulher não se ama e não tomar uma posição, ouvirá isso para o resto da vida. Tomar ‘porrada’ na cara. Então, ela tem que pensar nos filhos. Não, é melhor sozinha do que eu vitimizada sem condições de criar um filho".
"Os pais têm que estar atentos com os filhos na internet"
"Aqui, todos os mandados que representei estou tendo um respaldo".