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No centro da discussão está a atriz Fernanda Torres, garota-propaganda da campanha, que no vídeo afirma que as pessoas não devem entrar no Ano Novo com o “pé direito” — uma inversão direta de uma das expressões mais positivas e consolidadas do vocabulário popular brasileiro.
Uma expressão carregada de sentido cultural
“Começar com o pé direito” é mais do que um modo de falar. Trata-se de um desejo coletivo de sorte, sucesso e bons presságios, presente em diferentes gerações e contextos sociais. A expressão tem origem em tradições antigas, nas quais o lado direito simbolizava o que é correto, auspicioso e favorável. O Destro. Enquanto a esquerda é “sinistra”.
Na linguagem cotidiana, ela é usada para marcar bons inícios: no trabalho, nos relacionamentos, nos esportes ou na vida pessoal. Ao longo do tempo, tornou-se quase um consenso simbólico de otimismo.
Por isso, quando uma campanha publicitária decide subverter esse significado, o gesto deixa de ser apenas criativo. Passa a ser comunicacionalmente carregado.
Publicidade, símbolo e intencionalidade
A publicidade trabalha com códigos simples, de rápida assimilação e forte apelo emocional. Justamente por isso, o uso de símbolos culturais amplamente conhecidos exige cuidado redobrado. Negar ou inverter um símbolo positivo não é, em regra, um ato ingênuo.
No caso da campanha, a fala de Fernanda Torres não se limita ao humor ou à provocação estética. Ela atua sobre um imaginário coletivo que associa “pé direito” a sucesso, ordem e acerto — conceitos que também atravessam o debate público e político.
Ainda mais relevante é o contexto: 2026 será ano de eleições presidenciais, para governos estaduais, Senado e assembleias legislativas. Em cenários assim, mensagens simbólicas tendem a ser interpretadas com maior sensibilidade.
A personagem pública e o ambiente político
Fernanda Torres é reconhecida não apenas por sua trajetória artística, mas também por manifestações públicas de simpatia ao campo progressista, associado ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao Partido dos Trabalhadores, à esquerda do espectro político. Enquanto isso, à direita, está o “Bolsonarismo”. Os nomes Lula e Bolsonaro polarizam as eleições de 2026.
Isso não desqualifica seu trabalho como atriz nem implica, automaticamente, militância em campanhas publicitárias. No entanto, em comunicação de massa, a imagem do porta-voz é a mensagem. Marcas sabem disso — e costumam explorar esse capital simbólico de forma estratégica.
Assim, a combinação entre personagem, frase e momento histórico torna legítima a leitura de que o comercial pode dialogar com percepções políticas, ainda que de forma indireta ou ambígua. Neste caso, estes elementos reunidos em uma única peça publicitária, ultrapassaram a ambiguidade.
O peso institucional da Alpargatas
O debate ganha outra camada quando se observa o histórico societário recente da Alpargatas. A empresa passou, nas últimas décadas, por mudanças profundas de controle, muitas delas relacionadas aos efeitos da “Operação Lava Jato” sobre seus antigos acionistas.
Embora a companhia nunca tenha sido condenada por irregularidades, serviu como ativo estratégico para grupos que precisaram levantar recursos para acordos de leniência, na Justiça. Desde 2017, sob o controle de Itaúsa e da família Moreira Salles, a Alpargatas adotou um discurso forte de governança e compliance, buscando distanciamento de riscos reputacionais.
Esse histórico reforça a expectativa de que suas decisões de comunicação sejam calculadas e alinhadas a uma estratégia institucional bastante clara.
Ingenuidade ou mensagem calculada?
No marketing contemporâneo, especialmente em marcas globais, ingenuidade é exceção. Campanhas passam por múltiplas camadas de aprovação, testes de percepção e análises de risco. A inversão de um símbolo cultural positivo, pronunciada por uma figura pública politicamente identificável, dificilmente escaparia desse crivo.
Isso não significa afirmar a existência de propaganda eleitoral ou de intenção partidária explícita. Significa reconhecer que, no ambiente atual, mensagens simbólicas têm impacto político, ainda que não declarado.
O que fica para 2026
O episódio ilustra como publicidade, cultura e política estão cada vez mais entrelaçadas. Em um país polarizado e em contagem regressiva para eleições gerais, marcas que ocupam o imaginário popular inevitavelmente entram no radar do debate público.
Para o consumidor, resta o papel crítico: interpretar, questionar e compreender que, muitas vezes, o que parece apenas uma brincadeira publicitária pode carregar significados mais amplos — especialmente quando mexe com símbolos profundamente enraizados na vida cotidiana brasileira.

