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Neste 15 de outubro, enquanto escolas e famílias celebram o Dia do Professor, os números revelam uma realidade que contrasta com as homenagens. A profissão de docente no Brasil atravessa um período de desafios históricos e estruturais profundos, que ameaçam o futuro da educação e o desenvolvimento do país.
De acordo com a pesquisa internacional Talis 2024, apenas 14% dos professores brasileiros se sentem valorizados pela sociedade, um número que, embora tenha crescido três pontos percentuais desde 2018, ainda está muito abaixo da média de 22% dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Os dados traduzem um sentimento de desvalorização que se estende das salas de aula às políticas públicas, revelando que a docência ainda é uma das profissões mais essenciais e, ao mesmo tempo, mais negligenciadas do país.
A origem de uma data que nasceu da luta
A história do Dia do Professor é, antes de tudo, uma história de resistência. A data remonta à Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, sancionada por Dom Pedro I, que criou as “Escolas de Primeiras Letras” e definiu, pela primeira vez, a remuneração dos professores no Brasil. No entanto, a celebração moderna só surgiu em 1947, quando o professor Salomão Becker, do Ginásio Caetano de Campos, em São Paulo, propôs um dia de pausa e confraternização entre colegas, um gesto simbólico de autocuidado diante do desgaste físico e emocional da profissão.
Em Santa Catarina, o marco da data tem um significado ainda mais profundo. Foi a professora, jornalista e ativista Antonieta de Barros, primeira mulher negra eleita para um cargo público no Brasil, quem instituiu por lei estadual o Dia do Professor como feriado escolar, conectando a data à luta por equidade, inclusão e democracia. O feriado nacional só viria em 1963, sancionado por João Goulart, e desde então, o 15 de outubro passou a ser símbolo de reconhecimento, mas também de resistência, diante de uma profissão que há séculos busca por valorização.
O retrato atual: números que revelam precarização
De acordo com o Censo Escolar 2024, o Brasil conta com 2.367.777 professores atuando na educação básica, número que inclui redes federais, estaduais, municipais e privadas, e representa o maior contingente docente da história do país.
Mas dentro desse universo, os dados do INEP revelam um quadro preocupante nas redes públicas estaduais: pela terceira vez consecutiva, há mais professores temporários do que efetivos. Em média nacional, 50,04% dos docentes das redes estaduais trabalham em regime temporário, por isso precário, enquanto 49,96% têm vínculo efetivo.
Esse desequilíbrio reflete um processo de precarização que se intensifica ano após ano, afetando a estabilidade profissional e a continuidade pedagógica. Professores que deveriam construir trajetórias duradouras dentro da rede acabam vivendo ciclos de contratações e incertezas, o que compromete tanto o planejamento e a qualificação das escolas quanto o vínculo com os estudantes.
Em Santa Catarina, a situação é ainda mais crítica. Dados do Tribunal de Contas do Estado (TCE-SC) mostram que 75,96% dos professores da rede estadual são temporários, o segundo maior índice do país. Até junho de 2024, havia 36.102 temporários contra apenas 13.361 efetivos, o que significa 27,83% de estabilidade, muito distante da meta de 80% estabelecida no Plano Estadual de Educação.
Salários: avanços tímidos diante do desafio
O piso nacional do magistério foi reajustado em 6,27% para 2025, subindo de R$ 4.580,57 para R$ 4.867,77 para jornada de 40 horas semanais. Embora o reajuste tenha superado a inflação do período, medida pelo IPCA (4,83%), ele ainda está longe de recuperar as perdas acumuladas.
Em Santa Catarina, o governo estadual anunciou reajuste de 11%, dividido em duas etapas, e fixou remuneração mínima de R$ 5 mil para os professores da rede estadual. Ainda assim, de acordo com a Talis 2024, apenas 22% dos docentes brasileiros estão satisfeitos com o salário, número inferior à média da OCDE (39%), colocando o Brasil entre os cinco piores países nesse indicador.
Dados da PNAD Contínua/IBGE (2023) mostram que o rendimento médio dos professores das redes públicas com ensino superior é de R$ 4.942, o que representa 86% da renda média de outros profissionais com o mesmo nível de escolaridade. Há avanços em relação a 2013, quando essa proporção era de 71%, mas ainda há uma lacuna expressiva de valorização.
O peso do dia a dia: indisciplina, violência e saúde mental
O cotidiano escolar torna-se cada vez mais desafiador. Dados da OCDE mostram que professores brasileiros perdem 21% do tempo de aula tentando manter a disciplina, uma hora a cada cinco de ensino. Nos países da organização, a média é de 15%. Quase metade dos docentes (44%) relatam interrupções constantes dos alunos, mais que o dobro da média internacional (18%).
Além da indisciplina, a violência nas escolas cresceu de forma alarmante. De acordo com o Instituto Sou da Paz, as ocorrências de violência interpessoal em ambiente escolar aumentaram 250% entre 2013 e 2023, passando de 3,7 mil para 13,1 mil casos. A violência autoprovocada, como automutilação, aumentou 95 vezes no mesmo período.
Os impactos sobre a saúde mental dos educadores são severos. Segundo a Talis 2024, 16% dos professores afirmam que o trabalho prejudica sua saúde mental, enquanto a média da OCDE é de 10%. Estudos nacionais, como os da Fiocruz, mostram que 75% dos docentes apresentam distúrbios psíquicos menores, 44% sofrem de depressão e 70% convivem com ansiedade. Os transtornos mentais já superaram os problemas vocais como principal causa de afastamento do trabalho.
O estresse também aumentou: 21% dos professores consideram a profissão “muito estressante”, um salto de sete pontos em relação a 2018. O que era vocação passou a exigir resistência física e emocional em níveis quase sobre-humanos.
Formação: lacunas que comprometem a qualidade
O Brasil avançou na formação docente, mas ainda enfrenta sérias lacunas. O Censo Escolar 2024 aponta que 12,5% dos professores da educação básica não possuem ensino superior completo, índice que chega a 19,4% na educação infantil. Além disso, um em cada três professores da rede pública não tem formação adequada para a disciplina que ministra.
Segundo o INEP, apenas 68% dos professores da educação infantil e do ensino médio têm formação específica nas áreas que lecionam, e o número cai para 59% nos anos finais do ensino fundamental.
Outro dado preocupante é a predominância da formação a distância. Atualmente, 67% dos licenciandos brasileiros estão matriculados em cursos EAD. Embora essa modalidade tenha ampliado o acesso à formação, especialistas alertam que a experiência prática, essencial para o desenvolvimento pedagógico, vem sendo sacrificada.
O apagão docente: um futuro preocupante
A Fundação Carlos Chagas projeta um déficit de até 235 mil professores na educação básica até 2040, caso a evasão da carreira continue no ritmo atual. Entre 2009 e 2021, o número de docentes em início de carreira (até 24 anos) caiu 42,4%, enquanto o grupo com 50 anos ou mais cresceu 109%.
O desinteresse pela docência também é visível nas universidades. Segundo o INEP, o percentual de novos alunos com até 29 anos nas licenciaturas caiu de 62,8% em 2010 para 53% em 2020. Em cursos estratégicos, como biologia, química e letras, as conclusões caíram 21,3%, 12,8% e 10,1%, respectivamente.
Mulheres: a força ainda desvalorizada da educação
O magistério brasileiro tem rosto feminino: 79,2% dos docentes da educação básica são mulheres, segundo o Censo Escolar 2024. Na educação infantil, essa proporção chega a 96,3%, e nos anos iniciais do ensino fundamental, a 88,1%.
Entretanto, a desigualdade salarial persiste. Homens recebem, em média, 12% a mais, reflexo da concentração feminina em níveis de ensino com menores salários. A força de trabalho que sustenta a base educacional do país continua sendo também a mais invisibilizada.
Resiliência em meio às adversidades
Apesar de todas as dificuldades, a vocação permanece. A Talis 2024 aponta que 87% dos professores brasileiros estão satisfeitos com o trabalho, e 58% escolheram a docência como primeira opção de carreira. Mesmo com baixos salários, falta de estrutura e sobrecarga, os educadores seguem movidos por um senso de propósito e responsabilidade social que sustenta o sistema educacional.
Iniciativas de valorização: passos necessários
O governo federal lançou, em janeiro de 2025, o programa Mais Professores para o Brasil, voltado a 2,3 milhões de docentes e 47,3 milhões de estudantes. O programa inclui cinco eixos: seleção, atratividade, alocação, formação e valorização; e introduziu a Prova Nacional Docente, aplicada em outubro de 2025, com 1.086.914 inscritos em 17 áreas de licenciatura.
Segundo o Ministério da Educação, 1.508 municípios de 22 estados já adotaram o exame como critério de admissão. Em Santa Catarina, o concurso para 10 mil vagas anunciado em 2024 pode elevar o percentual de efetivos a 47,13%, ainda distante da meta de 80%. São avanços, mas que exigem continuidade e políticas estruturais de longo prazo, que seguem sendo cobradas pela categoria constantemente.
Evidências globais: educação valorizada constrói sociedades mais desenvolvidas
Estudos da FGV EESP Clear, com apoio da Fundação Lemann, mostram que a qualidade da educação está diretamente ligada ao crescimento econômico. Um aumento de um desvio-padrão nas notas de testes internacionais pode elevar o PIB per capita entre 1 e 2,2 pontos percentuais ao ano. Segundo o Banco Mundial, se o Brasil alcançasse o nível médio de aprendizagem dos países desenvolvidos, o PIB per capita seria 66% maior.
A OCDE aponta que os países com melhor desempenho no PISA remuneram bem seus professores e tratam a docência como carreira de prestígio. Na Coreia do Sul, o salário inicial equivale a 1,2 vez o PIB per capita, podendo chegar a 3,4 vezes ao longo da carreira. Apenas os 5% melhores alunos entram nas faculdades de educação. O resultado é um dos sistemas educacionais mais eficientes do mundo, com 98% de alfabetização.
Na Alemanha, professores de ensino fundamental recebem cerca de US$ 85 mil anuais, e em Luxemburgo, a remuneração chega a US$ 138 mil no topo da carreira. Já na Finlândia, onde o salário é moderado (entre US$ 2,5 mil e US$ 4 mil mensais), a profissão é uma das mais respeitadas, cada vaga em cursos de formação docente recebe até 20 candidatos.
Em contraste, os professores brasileiros do ensino fundamental II ganham US$ 23 mil anuais, menos da metade da média da OCDE (US$ 43 mil). Lecionam mais horas, têm turmas maiores e contam com menos apoio institucional.
A correlação é evidente: quanto maior o prestígio e o investimento na formação docente, melhores os resultados educacionais e econômicos. Como enfatizam estudos da OCDE e da FGV, a valorização docente é uma estratégia de desenvolvimento nacional, não apenas uma pauta corporativa.
O desafio que permanece
Neste Dia do Professor, as homenagens se multiplicam. Mas, por trás das flores e das mensagens, permanece um alerta: reconhecer é importante, valorizar é urgente.
A luta dos professores brasileiros vai além dos salários, envolve condições adequadas de trabalho, segurança, saúde mental, formação continuada e respeito social. É o alicerce de um projeto de país que só será viável quando a educação deixar de ser discurso e se tornar prioridade real.
O 15 de outubro deve ser lembrado não apenas como data simbólica, mas como um lembrete anual de que sem professores valorizados, não há futuro sustentável para o Brasil.
Esta reportagem especial do Notisul foi produzida com base em mais de 120 fontes de informação, incluindo dados de organismos internacionais (OCDE, Banco Mundial), pesquisas acadêmicas, levantamentos nacionais (Censo Escolar 2024, Talis 2024, IBGE, FGV, Fiocruz) reportagens e divulgações oficiais de governos estaduais e federais.